sexta-feira, 2 de março de 2012

Saga - Colmar Duarte


Saga
Um pouco a pé, 
um pouco nas carretas, 
cheguei até aqui com os pioneiros. 
Vim desbravar um chão desconhecido. 
Terra selvagem; 
mapa dividido 
cortando a América, de sul a norte 
(pobres despojos da caça abatida 
que a avidez de Algarve e de Castela,
a dente e garra, 
repartia em dois). 

Depois... 
os ranchos de barro e taquara, 
quincha de Santa Fé - casa e trincheira - 
e os palanques cravados no chão novo 
- marcos de posse, sinais de conquista. 
As labaredas dos fogões ao vento, 
drapejando no ar novas bandeiras, 
nessas planuras de perder de vista. 

Num orago 
a imagem protetora 
trazida de além-mar - santa e padroeira - 
aos pés da qual rezei 
quando as estrelas 
punham velas no altar do fim do dia. 

Plantei a terra aberta pela enxada 
pra o milagre do sonho 
e da semente. 
Dei ternura e amor ao meu marido; 
povoei com filhos a terra abençoada. 
Partejei como os bugres meus filhotes. 
Cada macho nascido 
outro gaúcho, 
um ginete, uma lança, uma outra espada! 

Cada fêmea arrancada do meu ventre 
outra esquecida, nessa luta inglória 
de ser mulher 
no amanhecer da história 
escrita pelos homens, simplesmente. 

Fui mulher e fui mãe, 
fui curandeira. 
Fiz promessas, chorei, 
benzi tormentas; 
aprendi rezas pra amansar a morte; 
cantei cantigas e curei feridas. 

Com pão e vinho celebrei a vida; 
com os olhos no céu 
tracei meu norte. 

Com mil cruzes 
pontuei o meu passado, 
ao enterrar os mortos pelas guerras 
que mudaram fronteiras e tratados. 

Na saga que vivi no Continente, 
se nome tive algum foi Ana Terra. 
Pois, como Anita, andei fazendo guerra, 
mas não abandonei a minha gente 
que fez deste rincão 
pátria e querência. 
Para viver aqui o tempo inteiro, 
anônima trilhei o meu calvário 
e desprezei o amor de Garibaldi 
pra ser mulher de Pedro Missioneiro.

As lágrimas 
verteram meu desgosto, 
mas o sorriso iluminou meu rosto 
pra o amor 
que das penas nos redime. 

Nas tempestades 
que enfrentei na vida, 
se me vergaram ventos, eu fui vime; 
permaneci em pé 
sem ser vencida. 

Busco há duzentos anos o horizonte, 
lutando sempre contra o preconceito 
de ser mulher 
e de sentir no peito 
amor por essa terra que é tão minha, 
porque as vidas 
vivi - todas que tinha - 
pra conquistá-la 
e ter esse direito! 


Colmar Duarte
 lua nova de janeiro, 2000 
Fontes:
 Tempo de Viver - Poemas Campeiros; Colmar Duarte http://www.paginadogaucho.com.br/poes/colmar-saga.htm



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